Primeiro Dia

"A príncipio é simples, anda-se sozinho, passa-se nas ruas bem devagarinho, está-se bem no silêncio e no burburinho bebe-se as certezas num copo de vinho e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida. Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo diz-se, do passado, que está moribundo, bebe-se o alento num copo sem fundo e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

E é então que os amigos nos oferecem leito, entra-se cansado e sai-se refeito, luta-se por tudo o que se leva a peito bebe-se, come-se e alguém nos diz bom proveito e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida. Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja, olha-se para dentro e já pouco sobeja, pede-se o descanço, por curto que seja, apagam-se dúvidas num mar de cerveja e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.


Enfim de uma escolha faz-se um desafio, enfrenta-se a vida de fio a pavio, navega-se sem mar, sem vela ou navio, bebe-se a coragem até de um copo vazio e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida. E entretanto o tempo fez cinza da brasa e outra maré cheia virá maré vaza, nasce um novo dia e no braço outra asa brinda-se aos amores com o vinho da casa e vem-nos à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."


Sérgio Godinho*

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